quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Soterrada

Eu tinha uma tarefa simples: entregar a caixinha para a dona Flor no 10° andar do edifício comercial n° 1703 no centro.
Ao entrar no prédio, a galeria que levava aos elevadores tinha o teto pintado como o céu, um corredor imenso com o teto de céu. Tão lindo que parei para apreciar a pintura por alguns minutos e por diversas vezes acreditei que eu estava mesmo entre as nuvens, senti o cheiro do 'paraíso' e a paz da imensidão azul. O sentimento foi tão intenso que cheguei a esquecer qual era o número da sala da dona Flor.
Caminhei por apenas um segundo e tudo ficou escuro e confuso.
Eu não podia me mexer e sentia muita dor. Desmaiei.
Ao recobrar a consciência foi mais fácil de entender o que tinha acontecido: o edifício da dona Flor havia desabado bem sobre a minha cabeça - literalmente.
Não sei quantos andares tinha ali, mas se eu estava indo visitar o décimo, havia pelo menos 10 andares de escombros em cima do meu corpo. Tudo era dor. Um cheiro muito forte, um breu total, minha boca estava cheia de poeira e tenho certeza que alguns órgãos  foram perfurados. Dor, tudo era dor. Desmaiei.
Eu ouvia alguns gemidos por perto, mas não conseguia decifrar sequer uma palavra ou pedir socorro.
O trabalho dos bombeiros precisa ser delicado para que não acabem tirando a vida de algum soterrado e trabalho delicado demora.
Eu não sei onde foi parar a caixinha da dona Flor e sequer sei o que tinha dentro dela. Eu só tinha que entregar a caixinha. Desmaiei.
É impossível ter noção da passagem do tempo quando se está debaixo de escombros e com tanta dor.
Eu quase não consigo respirar. Me encontrem logo, eu clamo em silêncio mas em desespero!
Não ouço barulhos e não vejo luz. Sinto a falência de vários órgãos.
Eu não sinto mais o cheiro das nuvens, eu sinto o cheiro da morte. Não posso mais respirar ou eu não quero mais respirar. Dez andares, tem dez andares em cima de mim. Não há esperança, não há vida.
Dona Flor, o que tinha na sua caixinha que tomou a minha vida?
Eu puxei o ar e ele não veio.

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